No país do samba, do axé, do frevo, do maracatu e de tantas
expressões culturais exuberantes, parece incoerente proibir danças nas
escolas. No entanto, em pelo menos cinco estados brasileiros projetos de
lei (PL) que visam esse tipo de censura estão em tramitação nas
Assembleias Legislativas.
As propostas têm objetivos e justificativas iguais. Pretendem proibir
danças que “aludam à sexualização” no ambiente escolar e que
promoveriam, na avaliação dos seus autores, a “erotização precoce de
crianças e adolescentes”.
No dia 28 de agosto, a integrante da bancada evangélica da Assembleia
Legislativa de Pernambuco (Alepe), deputada Clarissa Tércio (PSC),
apresentou o PL 494/2019.
Ela postou vídeos em suas redes sociais para divulgar a iniciativa. Em
um deles, gravado ao lado de um pastor, a parlamentar afirma: “uma
criança dançando na escola, balançando o bumbum, não é cultura”. Na
sequência, mostra uma gravação onde jovens estão dançando o passinho, um
tipo de coreografia oriunda das periferias do Recife.
O passinho pernambucano, que é diferente do carioca, tem sido o
principal alvo das críticas de Clarissa Tércio. Embora não seja citado
diretamente no PL, foi com essa espécie de cruzada contra a coreografia,
um estrondoso sucesso entre os jovens, que ela conseguiu espaço na
mídia. E isso com o projeto estando apenas no início da tramitação.
Inclusive, a OAB do Estado já alertou que o projeto é inconstitucional, ou seja, não deve ser aprovado.
Mesmo assim, a deputada fez escola. Dançado ao som do brega-funk, o
passinho pernambucano ainda não chegou a São Paulo. Mas, em 11 de
setembro, o deputado paulista Douglas Garcia, do PSL, apresentou um
projeto quase idêntico ao que está em tramitação na Alepe.
Declaradamente inspirado na iniciativa da deputada, o texto se
diferencia apenas pela supressão de um artigo onde a aplicabilidade da
norma para qualquer dança pernambucana fica estabelecida.
Como que em um movimento orquestrado, outras proposições semelhantes
apareceram em vários estados. Também do PSL do presidente Jair
Bolsonaro, o deputado estadual Capitão Contar apresentou, em 10 de
setembro, um PL equivalente
no Mato Grosso do Sul. Quase que uma cópia perfeita do projeto de lei
de Clarissa, o texto menciona que debates sobre o mesmo tema estão em
curso nas Assembleias Legislativas de Pernambuco e do Rio de Janeiro. No
Rio, onde se dança passinho ao som do funk, contudo, o projeto apresentado pelo membro da bancada evangélica, Márcio Canella (MDB), não estabelece proibição a danças, apenas medidas educativas de conscientização à erotização infantil.
Não são apenas os textos dos projetos se assemelham, como também seus autores. Todos são integrantes de bancadas evangélicas e/ou ligados à partidos políticos que defendem pautas conservadoras. Também do PSL do presidente Jair Bolsonaro, o deputado Paulo Trabalho é o autor de uma proposta que versa sobre a mesma temática em Goiás, em tramitação desde 2 de setembro.
Do Patriotas, o delegado Wallber Virgolino, levou o mesmo debate para
a Assembleia Legislativa da Paraíba, quando apresentou, no dia 6 de
setembro, o PL 920/2019,
que mira na proibição de “coreografias obscenas” nas escolas. Membro da
bancada evangélica da Assembleia Legislativa da Bahia, o pastor
Isidório Filho, do Avante, foi além. No dia 4 de setembro, apresentou um
projeto de lei que estende a proibição de ‘danças eróticas’ a programas de TV e em qualquer ambiente público.
Pesquisador das relações entre religião e política, o professor Joanildo Burity, da Fundação Joaquim Nabuco e da UFPE, considera que há um avanço de pautas conservadoras de maneira coordenada nacionalmente. Ele acredita que esse fenômeno ganhou força após a eleição de Bolsonaro, mas não necessariamente parte de um comando central. “Na verdade é o contrário. São grupos organizados, presentes no país inteiro, que constituíram representatividade ao longo dos anos nos ambientes de poder”, considerou. Contudo, Burity vê um esforço coordenado do campo evangélico conservador na defesa de pautas morais no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais.
De um lado, o pesquisador avalia que esses movimentos são
representativos, considerando o grande contingente de evangélicos na
população. Eles trazem pautas que têm ressonância nas igrejas,
sobretudo nas pentecostais, que representam mais de 60% do campo
evangélico no país. Por outro lado, os movimentos mais conservadores não
representam a totalidade dos evangélicos brasileiros, na análise de
Burity, mas “uma visão muito particular de uma fé que tenta ser imposta
por uma minoria”. É o tipo de imposição que acontece no caso dos
projetos de lei defendidos por bancadas evangélicas para proibir
danças. “Não custa lembrar que o Brasil constitucionalmente não
reconhece nenhuma religião como representante do Estado”, ressaltou o
pesquisador.
É proibido proibir
Psicóloga e mestra em antropologia, Daniela Sales reflete que, quando
se trata do público jovem, o proibicionismo quase nunca tem eficácia.
Para ela, os projetos que censuram danças tidas como estimuladoras da
erotização precoce são dicotômicos. “A indústria de cosméticos também
promove a erotização das crianças. Por que não é um alvo?”, questionou.
Ao cercear a liberdade de expressão através da dança nas escolas, a
psicóloga acredita que o debate sobre a sexualidade fica negligenciado.
“A partir de manifestações como o passinho, pode se iniciar discussões
sobre o corpo, os direitos reprodutivos e a objetificação da mulher, por
exemplo. Trazer o jovem para uma posição de protagonismo”, avaliou. Ela
chamou atenção para o fato de que o discurso muitas vezes adotado pelos
parlamentares é o da defesa da família e da moral, “mas uma família
heterossexual, branca e de classe média”. “No fundo é um ataque à
questões de gênero, raça e classe”, opinou Daniela.
A dinâmica conservadora do momento atual do Brasil aciona pautas que
tentam impor o controle sobre o corpo e sobre a moral, sintetizou o
pesquisador e professor da UFPE Thiago Soares. Ele ressaltou o fato de
que pautas semelhantes estão em voga em outros contextos, dentro e fora
das Casas Legislativas. E questionou: “o que é legislar sobre o corpo no
Brasil?”
“Somos um país cuja relação com o corpo é particular. A dança evoca
uma relação com a alegria. Há uma confusão entre alegria e sexualização.
O passinho pernambucano, por exemplo, é uma dança negra, periférica,
que vem atrelada com movimentos pélvicos. Numa leitura moralista do
passinho, se lê sexualização. Numa leitura ampla e progressista do
passinho, se lê alegria”, considerou.
A proibição de danças nas escolas pode comprometer o próprio
aprendizado dos jovens, na percepção de Soares. “A escola já é um espaço
de vigilância. Pensar em fiscalizar ainda mais o pátio da escola é
tirar alegria do ambiente de ensino. Tem que haver prazer no
aprendizado, na construção do conhecimento, não pode ser um espaço
apenas de regulação. O passinho e outras danças são um sopro de prazer
na experiência de educação”.
A Assessoria de Imprensa da deputada Clarissa Tércio foi questionada sobre uma possível ação articulada de parlamentares para proibir danças nas escolas, mas ainda não respondeu. Não conseguimos contato com os demais parlamentares até a publicação desta matéria.
Texto de Mariama Correa na Marco Zero Conteúdo